Na edição de 2 de abril deste ano do jornal “O Estado de São Paulo” o co-presidente da AmBev, Sr. Victorio De Marchi, disse que a Antarctica tinha um “plano B” caso a fusão de sua empresa com a Brahma não fosse aprovada: faria uma emissão de ações para reduzir sua dívida de curto prazo de cerca de R$1,5 bilhão. Dessa forma, eliminaria a pressão que a empresa sofria. Será que uma solução assim faria sentido?
Quem já não ouviu esse argumento: “a empresa é operacionalmente boa, o problema são os juros”? Se os juros estão acabando com o lucro da empresa, a solução parece ser a troca da dívida por ações, que só recebem dividendos quando há lucro e não pressionam o caixa da empresa! Será verdade? Vamos olhar mais de perto.
Suponha que alguém lhe ofereça o seguinte negócio: “tenho uma empresa que deve R$1 milhão, pagando juros de 20%aa, que significam uma sangria de R$200 mil em seu caixa todo ano. A empresa é boa mas os juros consomem todo o lucro. Que tal ser meu sócio?” Você então pensa rápido: “se eu investir R$1 milhão na empresa ela não pagará mais juros. Sem pagar juros, a empresa terá um lucro de R$200 mil sobre o qual pagará um imposto de, digamos, 33% ou R$66 mil, sobrando R$134 mil. Naturalmente, esse lucro será dividido com o sócio antigo, mas mesmo que seja totalmente pago a mim, representará um retorno de 13,4% sobre o capital que eu investi.”
Epa! Há algo errado aí! Se o credor, que recebe um juro fixo (a não ser que a empresa quebre) é remunerado a 20%aa, porque eu, que corro risco junto com o acionista antigo, devo esperar receber só pouco mais de 13%? Se é assim, prefiro ser credor! E você está certo: não deve mesmo investir, pois estará rompendo um princípio muito forte em Finanças: riscos maiores pedem expectativas de retorno maiores. Se o acionista possui um retorno variável e recebe depois dos outros supridores de capital da empresa, como fornecedores e credores, é natural que espere receber mais. Os recursos provenientes de dívida são, em princípio, mais baratos que o capital acionário, e por dois bons motivos: o primeiro é o risco, pois o credor recebe remuneração fixa e é pago antes do acionista. O segundo é que os juros são considerados despesa, e porisso reduzem o imposto de renda da empresa. Naturalmente, há limites para quanto a empresa pode endividar-se.
E não há exceções? Há sim, particularmente em um país como o Brasil, onde as taxas de juros de curto prazo assumem valores inimagináveis. Esses juros, típicos de cheque especial e de um mercado de pequenas empresas superam qualquer retorno de ação e devem ser evitados a qualquer preço. Não é essa, entretanto, a realidade das grandes empresas, mesmo as que se dizem endividadas. Aí entram as dívidas com financiamento à importação e exportação (com juros civilizadíssimos), linhas de financiamento de fornecedores de equipamentos, leasing, debêntures, enfim: dívidas que mesmo com juros acima do padrão internacional, são inferiores ao que o acionista quer ganhar.
Se uma empresa não consegue gerar recursos para pagar sua dívida, é porque uma de três coisas aconteceu: ou ela não é operacionalmente tão boa quanto parece, ou sua dívida foi muito mal estruturada (o tal cheque especial), ou há alguma perda no passado que a empresa agora não consegue pagar. Por exemplo, uma dívida em dólares que cresceu muito depois da desvalorização do real em 1999.
Mas... por que essa idéia de que as ações poderiam ser mais baratas que a dívida? Procure um livro de Finanças e apenas dê uma olhadinha no índice da parte de estrutura de capital. Certamente você encontrará menção ao termos “capital próprio” e “capital de terceiros” onde, na versão original (geralmente em inglês) aparece capital acionário (equity) e dívida (debt). Capital próprio dá a ilusão de que existe capital da empresa. Não existe capital da empresa: a empresa tem os ativos, e esses ativos são financiados por recursos de fornecedores, de empregados (com os salários que ainda não receberam), governo, bancos etc. Até acionistas. Sim, porque o acionista não se confunde com a empresa: é um fornecedor de recursos, o último que recebe, o que mais risco corre e, com todo o direito, o que espera a maior remuneração.
Dizer que o capital do acionista é capital próprio é um vício cultural nosso, reflete empresas de um só dono e que confundem o negócio com a pessoa, para prejuízo não apenas de acionistas minoritários e demais credores, incluindo aí os empregados e clientes, mas do próprio acionista controlador, que justamente por querer ser o dono de tudo não tem acesso aos mercados de capitais e perde a chance de crescer.
Então, fica combinado assim: não existe capital próprio!