Capital para quem?

        Assistimos recentemente ao lançamento do Novo Mercado na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Ainda sem participantes mas com muitos interessados, esse mercado é inspirado no Neumarkt alemão, de grande sucesso. O que é esse Neumarkt, ou Mercado Novo?

        Para entendê-lo, precisamos lembrar de um detalhe importante no estudo de Finanças: falamos muito de mercados acionários, fontes de capital e custo do dinheiro, mas freqüentemente esquecemos de lembrar que praticamente toda a teoria relevante de Finanças é desenvolvida pensando no mercado norte-americano, senão como objeto de estudo, no mínimo como modelo de comportamento de empresas e investidores. Pois bem: a Alemanha, a despeito de ser um dos países mais ricos do mundo, possuía um mercado acionário que em muito lembrava o brasileiro: pequeno em relação à economia como um todo, com importantes empresas ainda sob controle familiar e mesmo no caso daquelas de capital aberto e sem uma família por trás, um controle acionário bastante concentrado, recheado de participações cruzadas. O resultado disso não se assemelhava ao do Brasil apenas no tamanho do mercado, mas no comportamento das empresas em relação aos acionistas do mercado: pouca transparência de decisões, pouca importância dada ao acionista minoritário, pouca importância dada à possibilidade de se buscar capital para novos empreendimentos através da bolsa de valores.

        Lá, como cá, teve início então um raciocínio novo: será a pouca importância dos pequenos acionistas um efeito desse mercado ou, ao contrário, sua causa? Acreditando na segunda alternativa, a discussão seguinte foi a de se buscar na atualização da lei as características de mercados mais modernos e desenvolvidos. Semelhante ao caso brasileiro? Mais ainda, porque também lá essa reforma na lei parecia não andar... Foi então que surgiu a idéia de se criar um mercado novo, que compensasse a demora dos legisladores. O que era esse mercado? Nada mais que um pregão separado do pregão principal, no qual somente seriam negociadas as ações de empresas que aceitassem certas regras. Essas regras buscavam proteger o acionista minoritário, envolvendo itens como possuir apenas ações ordinárias, atender a certas regras de divulgação de informações mais detalhadas e freqüentes que as previstas em lei e acima de tudo, possuir no estatuto social algumas regras de proteção ao acionista minoritário com relação à sua participação no conselho da empresa e ao seu direito de venda ("tag along") com o controlador caso esse transferisse o controle a terceiros. Naturalmente, ao mesmo preço.

        Como era de se esperar,  essas novas regras provocaram um grande interesse por parte dos investidores. Uma questão de mercado: se você melhora as condições de oferta de um produto (neste caso, as ações), sua demanda cresce. O Neumarkt foi um sucesso. Além de bem sucedido, o Neumarkt definiu naturalmente sua própria função: dado que a maior resistência às mudanças na lei vinham das empresas já estabelecidas e de seus controladores, era natural que essas empresas se mantivessem no mercado principal. Foram as empresas menores, ávidas por abrir seu capital e ter acesso a mais recursos, que alimentaram o sucesso do Neumarkt. Pode ser que um dia se transforme ele próprio no mercado principal. Pode ser que não, mas nesse caso será inevitavelmente importante como mercado de acesso, aquele que representa a primeira oportunidade para a empresa que, um dia, poderá estar no mercado principal. É isso que a Bovespa quer repetir no Brasil. Ao invés de esperar pelas decisões do Congresso, mas sem ferir a legislação atual, a Bovespa procura criar um espaço de mercado para que os acionistas se sintam mais protegidos e as empresas tenham finalmente a oportunidade que teriam se estivessem no primeiro mundo.

        Não faltam desafios para isso. O primeiro, como na Alemanha, está no início. É preciso que algumas poucas empresas pioneiras tenham a coragem de entrar em um mercado que ainda não existe, e que investidores estejam dispostos a colocar seus recursos em um mercado que, por seu próprio tamanho e momento, ainda terá muito pouca liquidez por algum tempo. Pelo menos no que diz respeito às empresas, parece já haver várias candidatas.

        Um segundo desafio diz respeito à dinâmica desse mercado. Empresas pequenas possuem naturalmente um negócio de maior risco. O efeito sobre o mercado é o de maior desconto pelos investidores (ou seja ações vendidas a preços mais baixos) e grande volatilidade (ou seja, os preços e retornos das ações oscilam mais intensamente). Acontece que mercados emergentes, como o brasileiro, já são assim! É porisso que a Bovespa, com pouquíssimas ações de tecnologia, tem freqüentemente seu desempenho comparado ao da Nasdaq. Será que um Mercado Novo brasileiro, que já parte de uma bolsa mais volátil, não seria considerado volátil demais, afugentando os investidores? Todos esperamos que não, mas somente o tempo trará a resposta a essa pergunta.

        Finalmente, um terceiro desafio tem sido objeto da preocupação da Bovespa: os custos de quem está no mercado, que talvez sejam pesados para os novos entrantes. Auditores, balanços mais freqüentes (mais trabalho para a contabilidade), publicação de resultados em veículos de grande circulação, tudo isso traz custos facilmente assimiláveis por grandes empresas mas que podem inviabilizar o projeto de um pequeno empreendedor.Não falta iniciativa à Bovespa, que vem procurando atenuar o problema com uma divulgação parcialmente eletrônica de informações em seu site, negociando com empresas de auditoria preços menores para as empresas participantes do Novo Mercado (afinal, são clientes adicionais para as auditorias!). Contudo, parte dessa preocupação talvez seja exagerada, fruto de um foco talvez excessivo na contribuição direta do mercado acionário, esquecendo uma contribuição indireta importante: o desenvolvimento dos chamados "private equity".

        Muitas das empresas para as quais o custo do Novo Mercado é excessivo são de fato ainda pequenas para um mercado acionário. Viabilizar o crescimento dessas empresas é justamente o trabalho do private equity: fornecer recursos como investidor privado, viabilizando um crescimento inicial que preparará a empresa para recorrer ao mercado no futuro. Nos EUA, onde essa atividade é forte, a principal porta de saída desse investidor privado é a abertura de capital, definindo um padrão característico: empreendimento inicial; financiamento por um investidor privado; abertura de capital com a saída do investidor privado. Pois os tais investidores privados têm feito já investimentos no Brasil, mas a um ritmo inferior ao que eles mesmos previam, e um dos grandes fatores de restrição é justamente a dificuldade de saída pela falta de um mercado acionário.

        Aí está o caminho: o Mercado Novo não precisa ser viável para todos, porque não se destina a todos, mas de fato àquelas empresas para as quais a abertura de capital já é o caminho correto. Para aquelas mais no início de seu desenvolvimento, oferece também um benefício: viabiliza a entrada do investidor privado, seu primeiro passo de crescimento.